“Guia” para sobreviver aos exames | Eduardo Sá

Vêm aí os exames! Multiplicam-se as horas de estudo. Multiplicam-se as aulas de preparação para eles. Multiplicam-se as explicações. Multiplicam-se os comentários - dos pais, dos professores e dos órgãos de comunicação social - sobre a ansiedade dos alunos diante dos exames. E multiplicam-se os consumos de ansiolíticos e de antidepressivos. É claro que os exames são uma prova séria, que não se deve ignorar. Mas será razoável que se lhe dê a importância que eles não merecem?


Em primeiro lugar, é importante que haja provas de aferição - com classificações e sem elas - consoante os anos de escolaridade a que se destinam, que tragam argumentos robustos em relação à qualidade do ensino e aos conhecimentos dos diversos estudantes. Acresce, todavia, que quando se trata das avaliações acerca de algumas disciplinas do ensino secundário (matemática ou físico-química, por exemplo), estes momentos de avaliação serão mais fidedignos para os conhecimentos dos estudantes, tal a percentagem inacreditável dos que são acompanhados em explicações regulares nessas áreas de conhecimento, desde há muito tempo.

Em segundo lugar, os exames de hoje não têm, felizmente, a ver com o valor que tinham no “antigo regime”. Ou seja, atribuir-lhes uma percentagem sensata em relação à classificação final a uma determinada disciplina não faz deles uma espécie de “golo de ouro” com que, no “final do tempo regulamentar” (e de forma injusta e discriminatória), se rouba a democracia das oportunidades que a escola mais devia acarinhar. Aliás, se a discussão provas de aferição/exames nacionais, que preencheu muitas páginas de jornal durante algum tempo, já de si introduziu uma clivagem esquerda/direita infelicíssima (para os dois lados), associar os exames (nomeadamente, os do ensino secundário) a uma presumível discriminação social quando ela, desde os berçários ou do jardim de infância, não cessa de aumentar (sem que se vislumbrem protestos inequívocos ou medidas claras para que seja revertida), correrá o risco de evitar a pergunta: “os exames são úteis?” E, no caso de o serem, “para que é que servem?…”

Em terceiro lugar, talvez se possa questionar se, existindo uma paridade de métodos de ensino e de sistemas de avaliação, os exames nacionais farão sentido, havendo quem se pergunte que confiança pode ter um sistema educativo em si próprio quando, depois de continuadamente validado por quem o dirige, precisa de aferir, através duma amostra “macro”, a consistência dos conhecimentos e a qualidade do ensino que ele próprio tutela, reconheceu e validou. Seja como for, num país onde existem algumas escolas que reincidem nos enviesamentos de classificações dos alunos duma forma desonesta (sem medidas que as dissuadam e que vai merecendo a “distracção” de quem as devia castigar e a complacência cúmplice de muitos pais), um exame, com uma ponderação na nota final que represente uma percentagem equilibrada em relação ao valor final das classificações, poderá ser, para além de normalizar os resultados escolares, muito mais um factor de democraticidade do ensino do que possa parecer.


Em quarto lugar, tenho medo que muitos pais e muitos professores façam dos exames uma leitura ainda muito “colada” às suas experiências de alunos, dando-lhes um peso desmesurado e atribuindo-lhes uma preponderância muito para lá do razoável. E, por mais que a intenção passe por motivar e responsabilizar os estudantes, pergunta-se por que motivo os exames são, continuadamente, evocados como um “bicho-papão”, como se quem os pensa os elaborasse de forma desleal, descontextualizada das matérias e dos métodos de avaliação, e com a firme intenção de criar constrangimentos, “ratoeiras” e obstáculos (difíceis de transpor) ao sucesso educativo. O que não é verdade. Um exame será, muitas vezes, mais acessível que muitos testes. Não tanto porque os exames premeiem o facilitismo, mas porque haverá testes com graus de dificuldade muito elevados. Já agora - e deixem-me que o acentue, contrariando uma visão do género “no meu tempo é que era… porque chumbava muita gente” - não é por existirem mais reprovações a uma disciplina que o ensino é mais rigoroso e mais sério. Talvez um argumento desses alimente quem se deu mal com exames, quando os realizou, e encontre numa justificação como essa uma explicação “airosa” para insucessos escolares mal tolerados. Mas acaba por ter uma robustez semelhante à tendência, que se vai observando nalgumas escolas, para se colocar muito “pó de arroz” nas notas, como se os alunos se situassem, todos eles, entre o sobredotados e os geniais.


Em quinto lugar, não fará mesmo sentido que, quando se trata de serem avaliados às disciplinas acerca das quais se andarão a preparar, os estudantes passem por calafrios, só de pensarem os exames? Faz. Acima de tudo porque, ao contrário daquilo que lhes é dado a entender, todos nós passamos a vida a ser avaliados. E isso não é mau. Exige, antes, seriedade, determinação, humildade e ambição. E experiência de avaliação, o que só se consegue com momentos avaliativos de complexidade diferente, distribuídos ao longo do percurso educativo. E implica gerir a cabeça, os conhecimentos, o “coração” e o tempo com perseverança, com acutilância, com engenho e com denodo, com alguma capacidade de sacrifício e com tolerância à frustração. E exige que se coloque numa resposta capacidade de estudo e de síntese, expressividade, competências lógicas, raciocínio hipotético-dedutivo e capacidade de abstracção que façam com que ela seja inequívoca e esclarecedora em relação aos recursos que um estudante foi capaz de desenvolver. Um exame introduz, em resumo, uma tendência que leva os estudantes dos “campeonatos regionais” para o “desporto de alta competição”. O que não é, pelo contrário, incompatível com a nobreza formativa que a escola lhes disponibiliza e com aquilo com que a educação os privilegia.

Em sexto lugar, a escola não pode tornar uma avaliação do final do ano como uma experiência “esdrúxula”. Como se um exame fosse “a mãe de todas as avaliações”. Que não é! Aliás, se escola o fizesse, esse seu gesto poderia ser interpretado como uma forma ínvia de projectar sobre os exames e sobre os alunos as responsabilidades que ela própria não consegue assumir, a propósito das falhas da sua formação. Até porque um aluno razoavelmente preparado estará sempre habilitado a realizá-los sem sobressaltos exagerados. Ou seja, quando a escola coloca sobre os exames o ónus do sucesso de um ano escolar estará a ser, por distracção, razoavelmente desonesta, porque cria um facto que não corresponde à verdade. Já se com isso pretende motivar os estudantes estará equivocada quanto aos métodos. Porque se o medo é amigo da humildade, o “medo fastasmático” dos exames será quem mais alimenta o medo do medo, com que a maior parte dos estudantes se precipitam em direcção ao pânico. Por uma razão simples: porque “premeia” o exame com um medo muito para lá do medo com que eles convivem em situações semelhantes, e coloca um medo irracional em cima do medo saudável que eles - ou qualquer um de nós - têm diante de uma qualquer situação vivida como muito importante.


Em sétimo lugar, falemos, agora, para os pais. Porquê? Porque essa ideia de “viver sem ansiedade”, de que tantos falam e que muitos pais “consomem”, é “publicidade enganosa”. As pessoas saudáveis, sensíveis, inteligentes e calorosas nunca são indiferentes a nada. E, muito menos, aquilo que é muito importante para elas. Logo, a ansiedade será, assim, um sinal (saudável!) que “marca” um perigo potencial e que, em tempo real, nos capacita para sermos mais atentos diante dele, mais “focados” diante das arestas que nos traz e mais engenhosos na sua resolução. Ou seja, a ansiedade ajuda a resolver problemas. É claro que a ansiedade “fora de controle” os multiplica. Mas é, também, verdade que o “estás ansioso?” de muitos pais, ou o “não vale a pena estarem nervosos” de alguns professores - ao contrário do que uns e outros pretendem - cria o medo de se ter medo. E esse, sim, faz com que a ansiedade, em vez de ser vivida como um sinal que protege, se transforme numa ameaça que compromete, criando-se aí as condições para as “brancas” ou para os “bloqueios” de que tanto se fala.  Esse “sofrer por antecipação” - tão, involuntariamente, estimulado por muitos pais e por muitas escolas - não só não dessensibiliza os estudantes para a existência da ansiedade como também não os ajuda a aprender a viver com ela (e, sobretudo, a tornarem-se mais aptos a vencer, mesmo quando ela se insinua ou se “atravessa” no meio de um exame). Por isso mesmo, desejar que os filhos não estejam nervosos em situações de exame, repetir-lhes que “vai correr bem!” (não lhes dando espaço para falarem dos seus medos), esperar que alguém os liberte da ansiedade ou permitir que os ansiolíticos e os antidepressivos se tornem medicamentos de acesso “livre” nesses momentos, em vez de os ajudar no hoje e no amanhã da sua relação com as avaliações, cria situações não só muito pouco amigas dos exames como, sobretudo, pouco amigas dos filhos. Seja como for, se a “alta tensão” dos filhos - nestas alturas, e em resultado da forma como os exames são geridos - se traduz por manifestações mais “inflamadas” e mais “lamurientas” que os tornem “impossíveis”, isso não significa que os pais devam ser mais brandos nas regras de bom senso com que pautam a boa educação. Doutra forma, estaríamos a transformar esses momentos de avaliação numa fresta através da qual a “Lei familiar” parecia tirar férias durante a época dos exames, o que, valha a verdade, não ajuda a tranquilizar ninguém; antes agita! Aliás, um grito de pai ou de mãe, com um bocadinho de fúria, sempre que um filho se “estica” por causa dos exames, ajuda os filhos a deixarem de ver neles uma oportunidade preciosa para “mandarem no jogo” ou para “liberalizarem as regras” mais do que deviam.


Finalmente, nunca há circunstâncias óptimas para se ir a exame. É, até, engraçado o lado hábil dos nossos filhos quando insinuam que escolhemos as épocas de exame para os contrariar ou repreender, como se o fizéssemos - quase com um laivo de “perversidade” - para comprometer os exames. Ora, é normal que mesmo que eles não acreditem em bruxas, tenham “um lado supersticioso” que os leve a recear que o mundo inteiro se una só para lhes “tramar” os exames. Na verdade, quando elegemos alguns “fantasmas” estamos a exorcizar os medos. E isso faz bem; e ajuda a “digerir” o “nervoso miudinho”. Logo, se os estudantes nunca passaram por isso tanto quanto precisam, a ponto de aprenderem a conviver com ele, como é que poderão viver os medos “com calma”, como os pais tanto desejam? Aliás, de cada vez que se fica numa imensa “tremedeira” interior, essa experiência, que os nossos filhos induzem em si próprios só porque se imaginam numa situação de prova, serve de inoculação ao stress que, mais do que parece, funciona como uma “vacina” que os prepara para a situação real que, mais tarde, irão viver. Já quando argumentam que “funcionam melhor sob pressão” isso significa que foram guardando para “a última” o estudo que deviam ter realizado antes e que, pior, se terão dado bem com essas infracções humanas, como essa, em circunstâncias anteriores. Logo, é bom que não se alimente demais esse “slogan” … Do mesmo modo, quanto mais os pais, na ânsia de serenarem o medo dos filhos, mais lhes asseguram que “não precisam de ser os melhores”, só lhes aumentam a pressão porque, vendo bem, aquilo que parece prevalecer não será tanto que lhes exijam que dêem o melhor de si mas que tenham de mostrar que são… “bons”. Ora, há uma diferença grande entre darem o melhor de si e exibirem-se como “os melhores”. Darem o melhor de si faz com que a ansiedade os mobilize para o desafio; exibirem-se como “os melhores” faz com que tudo aquilo que impeça um estudante de ser “o melhor” (como a ansiedade, por exemplo) os transforme num presumível fracasso.

Em resumo, vêm aí os exames. E isso é bom. Sobretudo se não existir a tentação de “equipar” os estudantes com um guia para lhes sobreviver. Como se, para além de todo o trabalho que têm, só os vencessem sem medos, sem ansiedades e sem “bloqueios”. E, claro, com “fórmulas” eficazes que os tornassem indiferentes aos desafios e aquilo que representam para si. E isso sim, mais que do que qualquer exame, só lhes faz mal.