Crianças 8 e 80 | Eduardo Sá

"Ele é capaz do melhor e do pior" (que tem uma variante mais aritmética: "ou é 8 ou 80"") será uma das frases mais comuns de algumas mães, a propósito da relação dos seus filhos com os resultados escolares. E representa, na maior parte das vezes, desempenhos muitos oscilantes, onde tão depressa as crianças têm uma nota em redor dos 20%, no teste de uma dada disciplina, como, logo a seguir, têm (num outro teste) uma de 80%.
 
Noutras circunstâncias, estas crianças "de extremos", "bloqueiam" muitas vezes na primeira pergunta (é claro que isso depende do dia, da disciplina e, como não podia deixar de ser, dessa primeira pergunta de um teste) e, a partir daí, as respostas parecem "engasgar-se", numa espécie de "reacção em cadeia" quase imparável. Noutras, ainda, parece dar-se um "curto-circuito" que, para a maior parte dos pais, fica entre o enigma e o mistério, quando, em vez de uma criança indicar "todos os elementos que não são líquidos", numa dada pergunta, as respostas esclarecem todos aqueles que o são. Como se os enunciados fossem lidos, invariavelmente, "na diagonal" ou numa confusão permanente entre "figura e fundo", que deixa os pais incrédulos, atónitos e - como não podia deixar de ser - em fúria. Mas, para que tudo se torne mais inacreditável, as mesmas crianças que parecem "bloquear", quando nada o faria esperar (ou que, por vezes, "bloqueiam" tão completamente que tão depressa deixam mais de metade do teste "em branco", como chegam a recusar-se a iniciá-lo), mal são chamadas a uma sala ao lado da sua e lhes é pedido que "tentem" responder ao mesmo teste, diante do qual "bloquearam" - mas, agora, numa relação a dois com a sua professora - têm desempenhos, inequivocamente, bons (ou, mesmo, muito bons), podendo repetir-se este "enredo" várias vezes, nos testes seguintes. E - qual golpe de misericórdia - sempre com estas crianças a reagirem a cada teste com um mesmo "idioma", cuja a intenção será sossegar os pais: "correu bem" quererá significar, com "tradução simultânea", que a nota que está para vir andará pelo "satisfaz"; "correu mais ou menos", se Deus não se distrair jogando dados com o Universo, que estará para chegar uma "negativa alta" (como elas gostam de dizer) ou - quem sabe? - um 50%. Quando, finalmente, este "furacão" já vai longe de mais, e os pais ralham, rezingam ou ameaçam, é habitual que estas crianças preparem os pais para alguma taquicardia exagerada, guardando o teste muito fraco para a altura em que haja outro com uma classificação um pouco mais composta (preparando-os com "o clássico": "Tenho duas notícias... Queres que comece pela boa ou pela má?..."). Às vezes, "acontece" que "se esquecem" de dar o teste aos pais, para que eles o assinem. Chegando, no "limite dos limites", a poupá-los a mais um "desgosto", assinando-o por eles... E, tudo isto, com os pais numa "montanha russa" não muito diferente das notas dos filhos, oscilando entre as ameaças mais austeras ("Ou ganhas juízo ou ficas sem PlayStation até às férias", é um "hit" que colhe alguma unanimidade entre as mães) e um apelo, com muito menos "power", em que, de voz quase tremelicante, "encurralam" uma criança numa espécie de SOS do género: "Mas explica, por favor (quando é que a fúria de mãe se adocica até parecer suplicante?...), à mãe o que é se passou?..." é razoavelmente comum.

Mas, afinal, o que parece acontecer a estas "crianças 8 e 80"? Terão um "defeito de fabrico" como, tantas vezes, os pais confabulam, em segredo? Representarão estes resultados um "surto agudo" de dislexia, como outros chegam a formular? Serão um bocadinho "burras" e mais nada do que isso? Serão dignas de "desabafos de pais" do género: "Estás a gozar" comigo, é?...", (com que alguns, diante de notas tão saltitantes, acabam aos palpites, dignos de qualquer "Placard")? Serão, finalmente, resultantes de um "ataque de pânico?..." Mas, não sendo nada disso, porque será, então, que, em relação à escola, e seja qual for o seu ciclo de estudos ou o ano de escolaridade, há "crianças 8 e 80)?
Em primeiro lugar - e um comentário destes corre risco de parecer oscilar entre a bondade exagerada e a provocação - as "crianças 8 e 80" são, como todas as outras, inteligentes, intuitivas e sensíveis. Ou, por outras palavras, têm inúmeras competências, sem dúvida, mas, em relação a uma ou outra disciplina - em consequência de um episódio um bocadinho humilhante, em contexto de sala de aula; como resultado de um desempenho, acidentalmente, mau; por causa de uma "química" esquisita entre professor e aluno; ou devido a uma rivalidade exagerada (e, porventura, mal assumida) com um colega da sala - acabam por não estar a conseguir transforma-las em recursos. Chegando a um ponto em que essas disciplinas lhes trazem tanta dor, tanto medo e tanta revolta que podem, perigosamente, transformar-se num "ódio de estimação" que, mal gerido, podem vir a comprometer não só a respectiva relação com essas disciplina como, ao estender-se para outras (como se fosse um mancha de óleo), pode "constipar" a relação com a própria escola.
Chegados aqui, o problema que isolámos mantém-se: porque é que crianças inteligentes, intuitivas e sensíveis se transformam em "crianças 8 e 80"? Acima de tudo porque, como tantas vezes em que os pais o afirmam, "ganham medo" em relação a essas disciplinas. De forma mais simples, ainda, o medo é o melhor "amigo" das "crianças 8 e 80". Depois de um primeiro episódio (sempre acidental!), é natural que, ao "irem a jogo", numa segunda vez, já o façam um bocadinho "partidas ao meio": uma parte de si, reconhecendo que sabe as matérias, que terão sido recapituladas com os pais, acompanhadas com algumas advertências para que tenham "atenção", "juízo" e "calma"; outra parte, como se, de forma silenciosa, dissessem para si próprias: "Eu não vou ter medo! Eu não vou ter medo!" "Eu não vou ter medo!", o que as leva a dedicarem o melhor da sua atenção (sem que tenham consciência disso, claro) aos pequenos sinais do seu corpo, que monitorizam com particular atenção, mas que, feitas as contas, acaba por concorrer e interferir com a atenção que pretendiam dedicar à interpretação de um texto ou à resolução de um problema. Por outras palavras, depois de um "bloqueio" acontecer uma primeira vez, as probabilidades de acontecer uma segunda serão maiores; depois de uma segunda vez, as hipóteses de tudo acontecer uma terceira vez aumentam; e assim, sucessivamente. Cada vez mais, como se compreende, com as crianças a lidarem com as suas dificuldades num registo semelhante ao de quem "conta carneiros", para adormecer. E com os pais a aumentarem o tom dos conselhos, a saltitarem entre alguma ira e a estranheza.
Por outro lado, é expectável que, em função das "dores de cabeça" que estes resultados vão trazendo à relação de uma criança com a escola, as "crianças 8 e 80" se tornem "batoteiras". Isto é, que - muito por culpa de um mau resultado, que comecem a separar as áreas em que são "boas" daquelas de que não gostam, passando a fugir de estudar, a fugir de pensar, a fugir de compreender e a fugir de escutar todos as ajudas, explicações e conselhos que, directa ou indirectamente, se relacionem com esses assuntos que lhes provocam... "náuseas". É claro que a melhor forma de se ficar preso a um medo será fugir-se dele. E, em resultado disso, estarão criadas as condições para uma criança ora pareça  "burra", ora pareça não perceber o básico ou o elementar (a ponto de parecer disléxica), ora fique num sufoco muito semelhante a um episódio de pânico (que a faça não ter uma consciência muito nítida das suas respostas ou da forma como discorre), ao mesmo tempo que, noutras matérias, parece ser capaz dos raciocínios mais complexos.
 
Seja como for, é compreensível que, perante uma dificuldade diante da qual passe a existir um certo alarme, os pais recorram a um explicador para estas "crianças 8 e 80". É claro que há explicadores preciosos com a ajuda dos quais estas dificuldades começam a esbater-se. Mas, regra geral, é comum que os próprios explicadores engrossem o coro das pessoas atónitas diante das dificuldades destas crianças em contexto de teste, tal é a discrepância que existe entre aquilo que demonstram nas explicações e aquilo que não fazem nos testes. Para ajudar a tornar tudo, ainda, mais enigmático, é normal (e, na verdade, é de bom prognóstico) que estas crianças, mal atingem um nível positivo que contrarie todas as notas anteriores a essa disciplina, fiquem entre o deslumbramento e o medo acrescido de não o conseguirem repetir levando a que, num próximo teste, andem um ou dois "degraus" para trás para que, logo a seguir, dêem um passo mais consistente para diante até que, recuem, de novo. Ou seja, nunca se vai do 8 ao 80 sem avanços e sem recuos.
É claro que, tomando em consideração uma dificuldade escolar que se "enquistou", uma ajuda será sempre preciosa. Só que a matemática de um professor, a matemática do pai, a matemática da mãe, a matemática de um explicador e a matemática de um dos avós (que já terá sido professor) são muitas matemáticas diferentes: na forma como se formula um problema, no modo como se abstrai e se discorre, ou como se estruturam (peca a peça) os diversos passos da síntese que, no final, levam à sua resolução. Logo, muitos esforços "em cima de uma dificuldade" correm o risco de a tornar mais "labiríntica" e mais complicada. Por outras palavras, ganhamos se, perante uma dificuldade na matemática, por exemplo, formos buscar ao português, à educação musical ou à educação visual os argumentos com que se aprenda a operação mental que, depois, quase "em piloto automático", ao ser transposta para a área de conhecimento um bocadinho "constipada", permita que ela seja ultrapassada e resolvida. Tudo sem ir do 8 ao 80, claro, mas com uma estratégia que nos permita concluir que o mesmo "motor" que consegue que um aluno seja bom no português, por hipótese, não tem como não ir "dos 0 ao 100" com uma fiabilidade exemplar noutra área qualquer. Só com um último reparo: antes de uma criança fazer um raciocínio em tensão e em tempo real precisa, previamente, de se aventurar nele aos poucos, dando crédito a uma versão bem mais sensata do 8 e do 80: depressa e bem há pouco quem.

E, finalmente, como é que se resolve esta vertigem de resultados, semelhante a uma "montanha russa", de que as "crianças 8 e 80" são capazes?

1.     Não transformando nunca um primeiro insucesso numa alerta geral;

2.     Reconhecendo que as dificuldades escolares de uma criança serão uma responsabilidade mais repartida pela escola, pelo seu professor e pelos seus pais do que - ao contrário do que se vai repetindo por aí - uma incapacidade, exclusivamente, sua;

3.     Proibindo-a de estudar, sobretudo, para os testes. Aliás, devia ser proibido estudar, sobretudo, para os testes. 30 minutos de algum estudo, sem mãe e sem pai, todos os dias (assim a escola não exagere nos tempos lectivos e na tarefas que solicita) podem ser preciosos, porque se aprende "sem querer";

4.     Reabilitando o prazer de estudar que, em muitas escolas, está em vias de extinção. Executar e estudar são tarefas diferentes que exigem tempos diferentes. Por mais que muitas escolas pareçam não o entender...

5.     Evitando as explicações do género: "Fazem-lhe a papinha toda", como tantas mães referem. Entre termos quem pesque por nós ou nos ensine a pescar, apesar da banalidade da expressão, a escolha é simples;

6.     Permitindo que uma criança diminua (leu bem: diminua!) o seu tempo de trabalho diário. Se até os desportistas de alta competição não têm desafios todos os dias e moderam o tempo de esforço físico para que a exaustão não interfira nos seus resultados, porque é que as crianças têm de estudar na escola, estudar nas aulas de apoio, estudar nas academias de estudo e estudar nos ateliês de tempos livres (?), estudar nas explicações e estudar ao chegar a casa? Seria mais razoável, terem aulas (4 a 5 horas chega), terem uma actividade desportiva ou uma actividade lúdica, terem (pelo menos) duas horas diárias de brincar e, depois, 30 a 60 minutos com alguém que ajude a "mapear" e a pensar uma dificuldade escolar. Ou seja, trabalhar menos horas e trabalhar melhor fará diferença. Ou será que ninguém se pergunta porque é que as classificações dos nossos filhos - trabalhando mais horas em determinadas disciplinas que muitos meninos doutros países  - têm, muitas vezes, resultados inferiores a essas crianças que, pelos vistos, trabalham menos e melhor?

7.     Deixando de se dar a um plano educativo especial um formato que fica entre um processo administrativo e uma exigência burocrática, transformando-o, realmente, num efectivo plano psicopedagógico, personalizado para "aquela criança" e nunca replicado para outros meninos.

8.    Avaliando, psicologicamente, estas crianças  e retirando daí as "coordenadas", para os pais e para a escola, que as tornem iguais, em resultados, aquilo que elas podem ser, deixando o 8 e o 80, e passando a ser, simplesmente, meninos capazes de aprender mais e melhor (sobretudo, depois de terem vivido todas as dores que decorrem dos seus saltos entre "o melhor e o pior").